CARTOGRAFIA: PARAGENS
As nove fotografias de Ana Telhado (n. Lisboa, 1981), apresentadas pela primeira vez na presente exposição, fazem parte da série intitulada Cartografia, 2007. O pano de fundo é a Guiné-Bissau e as fotografias são resultantes da segunda viagem da artista a este país.
Outras séries fotográficas da artista reportam a Cabo Verde (Terra, corpo e ânima, 2005 e Máximo de paisagem, mínimo de céu, 2006), ao Brasil (Possibilidade da não existência, 2006 – exposta parcialmente na Galeria Módulo em 2006) e à Índia (2007).
As séries de Ana Telhado resultam de permanências de vários meses em diversas paragens (na dupla acepção do termo, geográfica e temporal). Todavia, as fotografias desta viajante compulsiva não são, entenda-se de imediato, fotografias de viagem. São, ao invés, fruto da imersão total no contexto, neste caso a Guiné-Bissau. Apresentam-se como conquistas: constituem a peça final amadurecida de cada uma dessas residências. Negam a fugacidade do flâneur.
Através da observação participante, Ana Telhado tem vindo a desenvolver um corpus fotográfico digno da prática etnográfica: conhece profundamente o quotidiano, as histórias e vivências destas mulheres e meninas, os sítios onde gostam de brincar, as suas amigas e famílias. Elas estão conscientes das apresentações de si mas desconhecem o que é a fotografia revelada e qual será o resultado das suas expressões, posturas e olhares.
Ana Telhado estuda os movimentos, posturas, a integração dos corpos na paisagem. Cria certificados de força do feminino – presenças imemoriais e mitificadas – que desmentem as visões miserabilistas do Outro. Os corpos assumem-se como elementos escultóricos e arquitectónicos (sejam eles colunas, paredes, portas, janelas ou raízes): são História, local e história local. São, eles mesmos, edifícios e raízes. Ou não será raiz a menina – cujas pernas parecem prolongar-se chão dentro – que sustém nas mãos um pedaço de madeira de formas quase humanas?
Se a fotografia fixa o instantâneo e o que se não poderá repetir existencialmente, Ana Telhado parece operar no sentido inverso: conduz-nos a paragens fixas, lentas, espessas e testemunha o que existe e é perene. Veicula imagens únicas, não manipuladas, que contrariam a massificação da imagem e que entram se inscrevem nos caminhos da memória. A artista diz-nos, na sua obra, que se o disparo fosse minutos, horas ou dias antes ou depois, a imagem seria a mesma. Que se viajarmos aos locais retratados e ali nos soubermos demorar, é esta a realidade íntima que encontraremos.
A representação do Homem e do seu meio ambiente foi o tema fundamental da arte clássica ocidental. Ana Telhado é, creio, uma artista clássica quanto à sua atitude estética de pureza
formal: clareza, sentido da harmonia e da proporção. A composição das fotografias é equilibrada e cautelosa; a linguagem, depurada, foge ao artificioso: visa a essência. É clássica também no que respeita ao medium utilizado – a máquina fotográfica não-digital, no processo de fotografar e de revelar, na obra final.
Evoca, deste modo, a arte da beleza tranquila, expressão através da qual o historiador da arte H. Wölfflin se referiu à arte do Renascimento. Embora com um assumido grau de encenação, as suas imagens correspondem à verdade, força imanente e absoluta – mas à verdade não documental. A artista dirige-se, pois, nesse limbo de fronteiras entre a captura do real e a estudada composição, a problemas centrais da obra de geral em geral e da fotografia em particular: a temporalidade, a verdade da imagem e a sua autenticidade (o aqui e agora de W. Benjamin).
As fotografias de Ana Telhado referem-se, ao mesmo tempo, ao que já foi e ao que é.
LUÍSA ESPECIAL ABRIL DE 2008