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ANA TELHADO_ EM ESTADO LIMÍTROFE

SONHAR ACORDADO

 

O trabalho que Ana Telhado desenvolve, de forma coerente e consistente ao longo das últimas décadas, incorpora questões que se ligam ao universo da mulher, elaborado com diferentes desígnios e explorando distintas geografias. As suas fotografias fundem o território feminino com a envolvente natural, sendo as árvores, os caminhos, a terra e o céu, elementos que expandem as possibilidades de leitura e acrescentam novos sentidos às composições. As fotografias resultam de ideias orientadoras, mas ganham autonomia na relação que a autora estabelece com as modelos e através da forma como a iluminação transfigura os corpos e os espaços. A invenção coreográfica que suporta as cenas é captada de tal modo que torna o espectador cúmplice do acontecimento, vivendo e experimentando indiretamente as sensações que a imagem provoca.

 

No corpo de trabalho que aqui se apresenta, todos esses aspetos estão presentes, mas o interesse que a fotógrafa tem dedicado à psicanálise aporta novas problemáticas que estão plasmadas nestes registos. De forma voluntária ou involuntária, as imagens parecem evidenciar a vontade de Ana Telhado escavar mais fundo a superfície das imagens, acedendo a zonas limítrofes entre o sonho ea realidade, entre o visível e o invisível. A projeção dessas fotografias, o prescindir de sua materialidade tangível, inscreve-se nessa vontade de sublinhar a evanescência e fugacidade das imagens sonhadas, tal como a opção pelo preto e branco, uma escolha recorrente, contribui para a diferenciação e afastamento do real.

 

Na génese destas obras está o trabalho que o nosso cérebro opera através dos sonhos; como toda a bagagem do vivido é “arrumada”, selecionada e eliminada para que a vida prossiga, tão resolvida quanto possível.

 

A recusa de valorizar estritamente a dimensão racional da existência, questão central para os surrealistas, ressoa nessas imagens: as roupas e os tecidos surgem como pretexto de ocultação, revelação e luta, como se estabelecessem a contraparte do corpo físico, desafiassem a gravidade e se projetassem como vestígios de uma ausência. Esses mecanismos de alusão indireta ao real estão presentes, por exemplo, na obra do fotógrafo mexicano Manuel Álvarez Bravo, autor admirado por Breton e que o incluiu na exposição organizada por ele, em 1940, no México.

 

María Zambrano, em Os Sonhos e o Tempo, escreve: “Quando através de uma obra de arte se produz este modo de ver na vigília, ver que é assistir e sentir, tem a mesma estrutura que nos sonhos correspondentes: o tempo deteve-se para a consciência perante este outro tempo de um passar perante ela e que se afasta dela: perante algo semelhante a uma despedida.”1

 

Ana Telhado relembra-nos a importância de incluir e articular facetas aparentemente distintas e contraditórias da existência, sem nada excluir, mas abrindo espaço e tempo para novos encontros e outras tantas despedidas, como diria María Zambrano. A fotografia vive, desde sempre, dessa tensão entre contrários.

 

José Domingos Rego

Azeitão, 25/06/2024

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 María ZAMBRANO, Os Sonhos e o Tempo, Lisboa, Relógio d`Água, 1994, pág. 133.

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