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da transição e da autonomia

João Silvério, 2021

No trabalho de Ana Telhado o processo fotográfico é um dispositivo que se encontra entre dois momentos: o primeiro é apenas um indício para o espectador, dado que lhe é anterior e assenta numa ideia de acção e de performatividade das figuras de mulheres no campo da imagem fotográfica e dos referentes que a artista selecciona para corporalizar nessas personagens modelos de representação construídos a partir de estereótipos sociais, como a indumentária ou, no caso desta exposição, em contraponto, o corpo desnudado em visões idílicas de despojamento e de ascese.  O segundo momento é dado à revelação de um estado transitório que podemos associar a uma ideia de coreografia interrompida. Como se a sua câmara, o seu olhar, se antecipasse em cada imagem à discursividade cenográfica sobre a qual não temos nenhuma referência, enquanto narratividade que se desenvolve e se transforma.
Este conjunto de fotografias, ao contrário de outras exposições, confronta-nos com imagens em que a utilização da cor se sobrepõe à utilização do preto e branco, mais característico em diversas séries do trabalho da artista. Neste aspecto, uma das obras, um díptico, é exemplar deste paradoxo, onde a mesma personagem parece transmutar-se no mesmo cenário florestal, agindo num movimento de libertação, envolta pela corda, na imagem a preto e branco, enquanto na imagem a cores parece deter-se, escutar e observar algo que nos escapa, com a corda, que é um elemento tensional, a transformar-se num adereço da sua indumentária, quase escultórico. Este corpo, vestido com uma espécie de fardamento que pode ser associado ao traje de uma hospedeira, convoca relações sociais, políticas e do universo do trabalho, da independência, do desejo e do sonho de realização, na esteira das convenções a que qualquer indivíduo é sujeito; neste caso em particular, esse sujeito é uma mulher, que no contexto deste projecto expositivo passa do individual para o colectivo, como podemos observar em três obras desta exposição. São gestos nocturnos, que anunciam momentos de catarse emocional, exprimidos por uma forte tensão física e por uma ruptura presente no desprendimento das vestes das quais se vão libertando.  Nestas fotografias encontramos uma tónica psicológica, visível nos rostos e mais acentuadamente no gesto, que o corpo anuncia num contexto em que a paisagem se cruza com uma ideia de natureza construída sobre um imaginário que nos remete para modelos românticos da história da representação, entre uma aura trágica e uma luz diáfana e translúcida, como por exemplo no tanque da Fonte de Beber, onde, de novo em contraponto, vemos uma mulher sentada e apoiada sobre um braço em cima de um palco. Esta figura é a referência mais concreta à construção destas personagens, por um lado vestidas com uma farda encarnando diversas acções, e por outro, sobre o palco, um espaço dedicado à perfomatividade, à dança, à representação e deste modo à sua condição de serem bailarinas, para quem o corpo é a expressão eleita para transmitir e também para nos questionar com a sua presença e a sua condição. Esta imagem é, de certo modo, o registo iniciático da representação labiríntica que Ana Telhado nos propõe através da roupagem, dos caminhos, dos adereços que ora nos alertam para a sua assunção enquanto seres no universo mercantil do trabalho, mas que são também o símbolo de uma possível libertação das cordas que aprisionam ou soçobram depostas sobre o chão térreo, mesmo quando sobre o palco. É também nesta imagem que, na expressão do rosto e do corpo maduro, reconhecemos uma mulher que resgata a pulsão ágil presente nos movimentos que revemos ao longo da exposição, entre a juventude e a maturidade que inscreve em si mesma uma passagem de estado físico e psicológico. Neste âmbito, o Corpo Lúteo, que dá o título à exposição, depõe-se perante o observador como uma metáfora, indexada à biologia e à psicologia, ou, nas palavras da artista, “à psicopatologia feminina” que, sem ficar refém de clichés e de estereótipos, nos confronta com uma transição da unidade do Ser, que se olha a si mesmo num processo de auto-conhecimento e superação. Mas é também, e essencialmente, sobre o questionamento da construção de modelos sociais de género que respaldam o Ser interior, o qual se reabilita continuamente no gesto,  no olhar que se resguarda no corpo desnudado, junto ao plano espelhado da água, em contraponto à modalidade e variação das expressões dos rostos, que inscrevem na indumentária o paradoxo que essa representação descreve sobre si mesma. Qual é então a corporalidade que estas imagens indagam? A biológica e interior, na consciência da mulher que se transforma e ultrapassa essa fase lútea, e toda a modalidade que o envelhecimento inscreve? Ou a de um corpo que, investido de uma condição convencionada pela roupagem, se assume como um Ser em transformação, e assim consciente da sua liberdade e da sua autonomia. Poderemos sempre dizer que ambos constituem essa condição de ser mulher. Mas é nesta duplicidade humana que as reconhecemos? Regressemos então à figura que nos enfrenta sobre o palco. E ao seu olhar.



 

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